Nova Iguaçu é o município mãe do antigo ”Recôncavo da Guanabara” e conta com uma população estimada em, aproximadamente, 825 mil pessoas. Conhecida como a ”capital da Baixada”, a cidade que fica a 28km de distância do grande centro do Estado, pertence à região que responde pelo terceiro maior colégio eleitoral de todo o Rio de Janeiro. Márcia Baiana veio com seu pai ainda menina, aos cinco anos de idade, de Vitória da Conquista/BA, para a Baixada Fluminense. Desde então, há 40 anos, escolheu Nova Iguaçu para ser a cidade que passaria a chamar de sua.
Negra, mãe solo, nordestina e mulher de Axé – Márcia Correa Passos, ou, Márcia de Oxumarê, é iniciada no candomblé há mais de 30 anos quando, também, escolheu empreender levantando as bandeiras da culinária e da cultura afro com a cara do Nordeste. ”O estalo aconteceu na viagem de retorno à minha terra natal, logo depois de decidir não concluir a faculdade de Letras e nem o curso técnico de enfermagem por ter dentro de mim a certeza que não eram por aqueles caminhos que eu deveria seguir. Conversando e desabafando com uma tia sobre as dificuldades financeiras que estava passando no Rio, acabei levando um belo puxão de orelha. Ela disse para eu ‘tomar vergonha na minha cara’ e fazer o que todas as mulheres da nossa família faziam há algumas gerações para sobreviver: vender acarajé e a comida do nosso povo! Entendi o recado na mesma hora e assim fiz quando voltei para casa. Naquele momento me dei conta do legado que estava prestes a dar prosseguimento e do tamanho dessa responsabilidade” – revela aquela que é considerada, pelos amigos e apreciadores de suas iguarias, a ‘baiana mais iguaçuana do Brasil’.
De lá pra cá foram diversas atividades como o tradicional tabuleiro de acarajé, a administração de restaurantes regionais nordestinos premiados e também a produção de eventos para promover e valorizar a cultura e a religiosidade afro-brasileiras. Desde 2005, pelo menos, ela organiza, entre outros projetos, seu caruru beneficente auxiliando instituições iguaçuanas doando alimentos, roupas e medicamentos. ”A Baiana”, como é carinhosa e popularmente conhecida, recebeu e apoiou durante os anos em que esteve à frente de seus antigos estabelecimentos, no coração de Nova Iguaçu, inúmeros artistas locais abrindo as portas para diversos movimentos culturais como: forró pé de serra, chorinho, comunidade cigana, afoxés e maracatu. Sua mais nova ”menina dos olhos” fica por conta do projeto Renascer onde, há pouco mais de dois anos, qualifica gratuitamente mulheres para o ofício de baiana de acarajé.
Para Márcia, desenvolver iniciativas que melhorem a vida da população com foco na cultura, na educação, consequentemente na geração de emprego e renda; e na diversidade é a oportunidade de conseguir ampliar o trabalho que já havia iniciado em uma escala um pouco mais reduzida, agora, para toda a cidade. As tradições ligadas à ancestralidade e à cultura popular, segundo Márcia Baiana, são importantes para preservar a memória e o saber das comunidades negras e das periferias.
”É importante, sim, exaltar nossas raízes mas é preciso fazer isso saindo do campo das ideias e de meras ‘salvas de palmas’. Desenvolver e estimular a continuidade de projetos culturais é enxergar além da velha prática de somente produzir um eventinho aqui e ali para as pessoas. Precisamos de políticas públicas que contemplem os trabalhadores da cultura e da economia criativa. Agendas práticas com leis de incentivo aos bares, restaurantes, clubes e outros estabelecimentos para a contratação de artistas da cidade; leis que garantam e assegurem que parte do fundo municipal de cultura seja destinado para negros/pardos e, também, para mães solo. Investir em cultura é investir em um setor capaz de movimentar toda a economia local. As pessoas passam a querer consumir naquele estabelecimento, prestigiam aqueles músicos, deixam os carros nos estacionamentos da redondeza, se lembram de comprar alguma coisa na farmácia ali do lado, acabam não resistindo quando passam em frente àquela lojinha de doce e levam uma guloseima na volta pra casa. Todo mundo sai ganhando e o dinheiro gira dentro da própria cidade” – conclui.
Dossiê da intolerância
Dados da Secretaria de Direitos Humanos do Rio revelam que, apenas nos últimos três anos, quase duas mil ocorrências de casos identificados como intolerância religiosa foram registradas no território fluminense — sendo a maioria em Nova Iguaçu. Segundo as estatísticas do Conselho Estadual de Defesa e Promoção da Liberdade Religiosa, desde 2017, a cidade tem o maior número de casos na Baixada Fluminense e o segundo maior em todo o estado. Um levantamento da Secretaria Estadual de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos (SEDHMI) confirmou que a Capital apresentou a maioria dos casos, seguida por Nova Iguaçu, em segundo lugar. Os segmentos religiosos que representam os maiores alvos da intolerância no Estado são o Candomblé, com 30%, seguido da Umbanda, com 22%. De acordo com o último censo do IBGE de 2010, em Nova Iguaçu, mais de 20 mil pessoas se declararam ”praticantes de religiões espíritas”. O sociólogo Vinícius Fernandes coloca holofotes sob outras duas questões: as subnotificações em relação às denúncias de crimes ligados diretamente à intolerância e à defasagem na autodeclaração de praticantes dessas religiões. ”É claro que existe a questão do medo da discriminação e muitas dessas pessoas não querem se identificar publicamente por receio de sofrerem algum tipo de represália ou até violência física mesmo. Acontece que há também uma questão técnica em relação à essas subnotificações, já que muitos casos não são tipificados como ‘intolerância religiosa’ e sim como ameaça, conflitos entre vizinhos, injúria, calúnia, difamação, perturbação da ordem e etc”, explica o cientista social baixadense e professor do Colégio Pedro II.
De acordo com a estreante no pleito eleitoral, apesar do cenário atual se apresentar pouco animador no que diz respeito à diversidade e até mesmo à liberdade religiosa, a expressão cada vez mais popular: ‘representatividade importa’; segue tendo sua importância e fazendo todo sentido. ”Muitos me questionaram quando decidi levar adiante a candidatura por conta da hegemonia da bancada evangélica na Câmara. Eu penso que é justamente pela constante crescente dessa bancada que é importante ter alguém que possa ser a voz de quem não se sente representado por esse grupo”, explica. Márcia lembra ainda que é fundamental o tratamento igualitário no que diz respeito à garantia dos direitos de templos religiosos que não são igrejas. ”Diversas denominações religiosas, em especial as de matrizes africanas, costumam enfrentar dificuldades na hora de legalizar seus espaços e, dificilmente, encontram no poder público quem se interesse em ajudar a lidar com a burocracia do processo. É importante que possamos assegurar por lei um apoio jurídico a esses grupos e, também, mecanismos que facilitem a desburocratização da isenção de IPTU e demais impostos para quem se encontra com dificuldade de registrar corretamente o lugar, por exemplo”.
FOTO Máira Freire