Cirurgia rara de separação de irmãs siamesas no Hospital Estadual da Criança completa um ano

Metade dos 18 meses de vida de Gabriella e Raphaella foram vividos dentro do Hospital Estadual da Criança (HEC), em Vila Valqueire, Zona Oeste do Rio de Janeiro. As duas meninas nasceram unidas pela região abdominal, com fusão do fígado e uma pequena parte do osso esterno, após um parto de trigêmeas. Foram cinco meses de preparação das crianças e da própria equipe médica para a realização da cirurgia, que completou um ano no último domingo, dia 5 de julho.

 Além do período que antecedeu a cirurgia, as irmãs precisaram ficar mais quatro meses na unidade para acompanhamento pós-operatório. Em novembro do ano passado, nove meses após chegar ao Hospital Estadual da Criança, a família deixou a unidade e voltou para casa em Rio Claro, na região do Médio Paraíba. Era a primeira vez que o casal teria juntas as trigêmeas Gabriella, Raphaella e Isabella.

A mãe, Sara Domiciano, ainda se emociona ao lembrar dos dias difíceis que as filhas passaram ainda tão pequenas e conta que a recuperação das duas foi excelente:

“Foram muitas horas de cirurgia, quando a gente voltou para o hospital a Raphaella já tinha saído da operação e ainda estavam tentando deixar a Gabriella estável. Quando a gente as viu separadas foi outra emoção, porque até então a gente só tinha visto elas coladinhas. A recuperação delas foi melhor do que a gente podia imaginar. Eu estava vendo algumas fotos e não tem como não se emocionar. Eu olho para elas hoje, conto a história para as pessoas e elas não acreditam. As duas passaram por isso tudo e hoje são saudáveis, são espertas como qualquer outra criança”, disse.

 Segundo a mãe, o desenvolvimento das meninas é normal, como o de qualquer outra criança, sem restrição médica alguma:

 “As três já andam e uma é diferente da outra. Apesar de Isabella ter todo o estímulo em casa desde que nasceu, quem desenvolveu primeiro a fala foi Raphaella, que nasceu unida com Gabriella. Uma aprende uma coisa e as outras imitam. Estão no mesmo nível de desenvolvimento. As três já falam algumas palavrinhas, já andam e fazem muita bagunça”, conta Sara.

 Ela e o marido, Agnaldo Oliveira, descobriram no quinto mês de gestação das trigêmeas que duas das meninas eram xifópagas, isto é, tinham partes dos corpos unidas. O caso atípico se torna ainda mais raro por envolver uma gravidez de trigêmeos, algo inédito na literatura médica brasileira até então.

 “Nunca foi relatado no país um caso onde em uma gravidez de trigêmeos, dois nasçam unidos. Nesse caso, foram duas crianças siamesas e uma não siamesa juntas, na mesma gravidez. Eu só vi na literatura mundial 13 casos descritos dessa forma, o que tornou esse caso ainda mais raro”, explica o médico Francisco Nicanor, chefe do serviço de Cirurgia e Urologia Pediátrica do Hospital Estadual da Criança.

 A unidade é referência para tratamentos de média e alta complexidade em crianças e adolescentes, de zero a 19 anos. Porém, uma operação deste tipo era algo inédito no HEC. O procedimento exigiu também uma estrutura de pré e pós operatório que movimentou mais de 50 profissionais de diversas especialidades.

 Gabriella e Raphaella foram acompanhadas no hospital, durante cinco meses, por uma equipe multidisciplinar com pediatras, cirurgiões, nutricionistas, entre outros profissionais de saúde, até que crescessem mais e ganhassem peso para, então, estarem aptas a realizar a cirurgia de separação.

Um mês antes do procedimento, foi feita uma simulação com manequins, desde as crianças saindo da UTI Neonatal e entrando no Centro Cirúrgico até a intubação. Para simularem a forma siamesa, os bonecos foram amarrados com fitas especiais. Foi testado também o final da separação das crianças, quando uma delas seria levada para outra mesa, de forma estéril para que não houvesse contaminação. A mesa já deveria estar rigorosamente pronta com outra equipe médica. Todas as etapas foram filmadas e estudadas para evitar erros no procedimento real.

 Após a cirurgia, em julho, veio a fase de as gêmeas aprenderem a viver separadas, experimentando novas impressões, sensações e orientações espaciais. Outras especialidades médicas entraram em ação nessa etapa do desenvolvimento, como fisioterapia e fonoaudiologia, até que Gabriella e Raphaella tivessem mais independência para comer e se movimentar.

  Toda a assistência às meninas foi realizada no sistema público de saúde, desde o pré-natal na unidade básica municipal até a cirurgia de separação e o pós-operatório na rede estadual. Atualmente, as crianças seguem em acompanhamento preventivo com fisioterapia e fonoaudiologia no município. O resultado positivo de um procedimento médico tão complexo e sofisticado dá um significado especial a história, não apenas para a família, como também para a equipe médica envolvida.

“Provavelmente eu não vou ver mais um caso desses na minha vida, de uma raridade muito grande e com um resultado fantástico. Nós tivemos uma estrutura do nascimento até os quase cinco meses, verificando o ganho de peso das crianças e preparando tudo para a cirurgia. O resultado foi cem por cento positivo, as crianças são perfeitas. Não só para mim, mas para toda a equipe do hospital, já que foram muitas pessoas envolvidas, é um marco que nós nunca mais vamos esquecer”, relembra Francisco Nicanor, o cirurgião responsável pela operação de separação das gêmeas.

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